domingo, julho 23, 2006

A Ida de Maria Bonita à Fashion Week

O primeiro folheto de cordel. Eram as férias de julho que já estavam chegando ao fim.Em duas tardes (dias 28 e 29) escrevi a narrativa, à mesa da sala da casa de minha mãe. Lembro de alguns amigos ficarem desconfiados e cabreiros sobre a Maria Bonita em São Paulo e na Fashion Week, evento que já era "chique". Bem, a intenção foi a mescla de culturas que é comum na Literatura de Cordel, principalmente pelos cordelistas contemporâneos. O melhor foi sentir a emoção de um trabalho ser publicado. Marcelo Soares, um dos maiores xilográfos em atividade, elogiou o trabalho. O mais interessante é que "A ida de Maia Bonita..." fez com que nos conhecessemos. Sofri um pouco com a "redondilha maior" - métrica de sete sílabas, pois até então eu escrevia sonetos em estilo decassílabo...Foi a minha entrada no mundo do cordel.

Andando de canto a canto
Do Ceará pra Buíque
Maria Bonita enfada
Num tava güentando o pique
Chegou pra Lampião séria
Vou pra Sum Palo de féria
Visitar a “Fechuíque”

Lampião deu c’a miséria:
- O que é meu outro num óia
Quanto mais minha mulé
Pra homem coçar jibóia
Pode baixar seu archote
Que hoje num tou bom pra xote
E num vai nem c’a pinóia!

Maria Bonita zangou-se
E atirou fora os perfume:
- Se você num me deixar
Num vai ter boca que fume
Nem espingarda que atire
Nem pedido que eu me vire
E nem laranja com gume

Ele ficou todo gaizo
Se ficasse num comia
Se ela fosse pra lá
Sexo também num fazia.
Logo ele moleceu o braço
E foi lhe dando um abraço
- Lá ela num me judia

Virgulino foi falando
Mais manso que uma preguiça
Maria Bonita andando
Logo foi pondo premissa:
Pegue o nosso matulão
Me leve para estação
Que o trem já já desenguiça.

E Lampião se encolheu
Nem sequer deu chiadinho
Pensou: A mulé se vai
E eu fico aqui sem carinho.
Mas vou fazer sua vontade
Quem ama vê lealdade
Não fica vendo daninho.

E Maria Bonita foi
Sozinha no mei do mundo
No verso dum foi não foi
Dum poeta sugismundo.
Descendo a Sanfranciscana
Pela caatinga baiana
De cerrado bem no fundo.

O condado arbustivo
De herbáceas se reveste
Caminho um tanto seguido
Por muito cabra-da-peste
Que sai dum feroz mormaço
Cruzando um tal de Espinhaço
Nessa região Sudeste.

Maria Bonita já viu
Muita cidade presente
De Juazeiro a Corinto
E o Chicão de penitente
Porém chegando em Sum Palo
Ela deu danado estalo:
- Aqui se entupiu de gente!

A cangaceira cantou
Da beleza que deu vista
Viu gente do mundo inteiro
Alegrou-se da conquista
De ver mulher trabalhando
Sozinha ou também em bando
Nessa avenida Paulista

Assustou-se com a Política
E com tamanha surpresa:
Um é médico e defunto;
Outra de frango é nobreza;
Um rouba para fazer
Ninguém sabe o que temer
De gente com safadeza!

Passada a apresentação
Dessa cidade gigante
Maria Bonita correu
Pro desfile num instante
E ela que só foi olhar
No lugar de visitar
Deu para ser desfilante.

Foi aí que um rapazote
Lhe tirou a carapuça
Ela de doida se armou
Meteu-lhe o cano na fuça
- Me dê essa minha touca
Senão lhe meto na boca
Bala que deixe ela avulsa!

O menino se tremendo
Cabou de medo cagando
Daí veio uma mulé
Mui alta se esprivitando
- Senhora, não fique prosa
Como sinhá é famosa
Nós tamo lhe convidando.

Maria Bonita, cabreira,
Achou que era conversa.
E de tanto matutar
Enxergou-se toda aversa:
- Vá pra lá com prosa imunda
Qu’eu num mostro minha bunda
Fico feito mulé persa!

- Mas d. Maria Bonita
A senhora é belezura
Rosto lindo, de olho firme,
Coxa grossa e perna dura.
E a Rainha do Cangaço
Amoleceu o corpo e o passo
Remoendo rapadura:

- Eu num saí do sertão
Pra servir que nem modelo.
Lampião tá lá sumido
Sem saber desse novelo
De coisa tudo entronxada
De mundiça afrescalhada
Que nem penteia o cabelo.

A modeleira calou
Mas logo comeu na linha:
- Se num queria desfilar
Por quê avisou que vinha?
Maria Bonita tremeu
E de mofina se deu:
- Foi pra comprar calcinha.

E a Rainha concordou
Com a proposta desfilar:
- Mas antes de me chamarem
Eu devo ir prum lugar.
Vou pruma igreja me ter
Já pro Senhor me benzer
Pra Lampião num brigar.

E assim se foi a Rainha
Num veloz dum bacurau
Foi simbora lá pra rua
Pra ninguém lhe falar mal
Tinha gente de Sumé
Lá na praça Santa Sé
Onde fica a Catedral.

Rezou muito disposta
Pros santos da ladainha
Cum terço na mão direita
Deu foi rosário na linha.
Pediu pra santo de pobre
Qu’assim a alma é pura e nobre
De São Bento à Terezinha.

Chegando na Bienal
Vestiu roupa de etiqueta
Que de tão raparigada
Mostrava a danada preta.
Foi um fole tão renhido
Que catucou o pissuído
Deixando a desgraça feita.

A Rainha estarreceu
Cuma raiva da disgrama
Aquetou sua jurubeba
Mas deu cacete na dama:
- Me dê roupa, sua jupenga,
Que eu num tô aqui de quenga
Pra exibir a minha “fama”!

E botaram roupa justa
Salto alto, batom e laço
Ela, de graúda e nova,
Num deu pra ninguém espaço
E da silhueta a curva
Deixou foi modelo turva
Que nem o Rei do Cangaço.

Foram fotos pra jornal
E entrevista pra TV
Matéria para Internet
Pro mundo todo sabê
Inclusive Lampião
Que botou mão no cocão
E sentiu o chifre crescê.

Mas Maria Bonita riu
Quando Cicarelli veio
Tão charmosa, toda chocha
Bem enfeitada de arreio.
E vendo a Rainha bela
Chegou bem pertinho dela
Ficando só de joeio.

As modelos do estrangeiro
Ficaro tudo maluca.
Mulé feito aquela é sonho
Gisele Bündchen é a Cuca.
Montaram um cafundó
Que chega mermo deu dó
De tanta feia no açuca.

E de Maria foi sucesso
Que na semana seguinte
Para o Rio de Janeiro
Caiu toró de pedinte.
Ela já muito vaidosa
Num deu pra curtir a glosa
Lembrou do século XX.

Maria Bonita correu
Foi vortá para estação
Pegar o trem bem ligeiro
E se daná pro Sertão
Que taipa pra pau-a-pique
Sulanca pra “Fechuíque”
É dengo no coração.

E chegando no Araripe
Destrambelhou o Seridó
Traquinando o Ibiapaba
Remexendo o Moxotó.
De longe viu Lampião
Cum punhal de ouro na mão
Apontando o seu gogó.

- Que história foi dessa vez
Que a senhora me arrumou
Deu no jornal e TV
A Dona me corneou?
- Eu num sei dessa Dona
Tinha lá Maria Lindona
Que todo mundo mirou...

E assim, o verso partindo
Tudo ficou muito bem
Lampião de brabo certo
Sabe: bela mulé tem.
Intonce o bando detona
E o verso pede carona
Pelos planaltos do Além.


Jaboatão, 29 de julho de 2004.

3 Comments:

At segunda-feira, 07 agosto, 2006, Anonymous Anônimo said...

Cadê "Bush, o Papa e Severino Cavalcanti"?
Acho que esse blog merece muito mais de suas escrituras! Mas pro começo, está ótimo!
Publica aí os contos também!
Adoro todos os cordéis, em especial, o citado acima!
beijo!

 
At segunda-feira, 14 agosto, 2006, Anonymous Anônimo said...

Você sabe o que penso deste...
Agora, cadê o mais criativo de todos: Quando os beatles gravaram Asa Branca???

 
At sexta-feira, 25 janeiro, 2008, Anonymous Anônimo said...

Tua esposa gosta é de cana mesmoooo!
Adorei Rafinha!
beijoca
Taci

 

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